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ICMBio é acusado de destruir terreiro de Jarê em Lençóis; órgão lamentou a violação do espaço

Além do terreiro, em torno de dez casas na comunidade do Curupati foram derrubadas na ação realizada pelo órgão.

No dia 21 de julho de 2024, o Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca e a comunidade do Curupati, localizados dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina (PNCD) foram alvo de uma ação de fiscalização de agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Dentre os imóveis, o terreiro liderado por Gilberto Tito de Araújo, conhecido como Damaré, foi invadido por agentes do ICMBio, que destruíram o espaço sagrado e mais de dez casas onde residiam cerca de 35 famílias. A comunidade alega que a ação foi realizada sem diálogo com os moradores, notificações prévias ou qualquer negociação com autoridades municipais. 

Em nota, a gestão do PNCD argumenta que as construções são recentes, e que não tinha conhecimento do referido terreiro, nem identificaram o local como centro religioso no momento da fiscalização. A nota contraria as imagens e depoimentos de moradores locais, que comprovam que as construções estão dentro de uma área de roça que pertencia ao pai de Damaré há mais de 45 anos, antes da demarcação da área como unidade de conservação.  

O Parque Nacional da Chapada Diamantina é uma Unidade de Proteção Integral, proibindo assentamentos humanos dentro do seu perímetro. No entanto, especialistas informam que na ação há uma sobreposição legal aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, haja vista o Decreto no 6.040, de 2007, que foi criado para promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Este decreto engloba o reconhecimento e a garantia dos direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais aos povos tradicionais, visando respeitar a sua identidade, suas formas de organização e, sobretudo, suas instituições.

Foto: TiviGriô

O decreto entende os Territórios Tradicionais como “espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária” e, ao longo do seu texto também coloca como objetivo solucionar e/ou minimizar os conflitos gerados pela implantação de Unidades de Conservação de Proteção Integral em territórios tradicionais.

Há um parecer da Advocacia Geral da União, da Procuradoria Federal e do próprio ICMbio (Parecer 175/2021) que prevê o direito básico de defesa das comunidades, e determina que ações de demolições devem estar amparadas em processo administrativo individualizado e seguindo o devido processo legal. O parecer determina as condições de permanência das populações tradicionais em Unidade de Conservação de Proteção Integral sendo reguladas por termos de compromisso, segundo os quais cada parte deverá seguir uma orientação no que diz respeito à conservação da área. Segundo as comunidades, esses procedimentos não teriam sido seguidos pela fiscalização no Curupati.

O movimento negro de Lençóis considera a ação um ato de racismo religioso. O diretor de Promoção da Igualdade Racial de Lençóis, Uilami Dejan informa que estão sendo encaminhadas denúncias das violações à Defensoria Pública da União e Ministério Público Federal. Para o Observatório dos Conflitos Socioambientais da Chapada Diamantina (OCA) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a ação viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata sobre povos tradicionais. 

Foto: TiviGriô

A medida pegou os membros do Conselho do Parque Nacional da Chapada Diamantina de surpresa. A maioria tem manifestado repúdio ao ato. O Campus Avançado da Chapada Diamantina da Universidade Estadual de Feira de Santana, que há muito dialoga com os povos de terreiro e participa do Conselho do PNCD desde o início, através da sua gestora, a professora Marjorie Nolasco, diz acompanhar com indignação o processo e exigir imediata reparação a comunidade do Curupati e ao Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca.

Para a professora e socióloga Maria Medrado, desde a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina em 1985, comunidades e povos tradicionais lutam para garantir seus direitos, sobrepostos pela Unidade de Conservação. Medrado defendeu uma tese de doutorado, em 2018, sobre a violação de direitos e conflitos socioambientais provocados pela implantação do PNCD.

Segundo a antropóloga Paula Zanardi, especialista em povos tradicionais, o terreiro de Damaré é parte dos poucos terreiros que ainda resistem em Lençóis, preservando e difundindo a memória do garimpo e as práticas religiosas afro-indígenas. A pesquisadora estuda os terreiros de Jarê da cidade e entende que a violação demonstra um desrespeito à memória, às tradições culturais seculares e à diversidade religiosa chapadeira. “A destruição do terreiro representa uma perda irreparável para a comunidade de Lençóis e para a cultura brasileira como um todo”, lamenta. 

A antropóloga enfatiza que o espaço religioso conta com diversas sinalizações indicativas de que se trata de um espaço sagrado. Vídeos que circulam na internet mostram uma placa sobre a porta com o nome do terreiro. No interior da casa de santo, estavam imagens e objetos sagrados que confirmavam se tratar de um ‘peji’, onde estão os assentamentos dos caboclos de Damaré. A violação ainda pode implicar em danos para a espiritualidade do religioso.

No documentário Profilaxia Mágica (2021), dirigido por Rodrigo Rodowicz da Zabelê Filmes, o mestre Damaré aparece em seu Peji Pedra Branca durante a pandemia do coronavírus como um guardião da natureza, e não um autor de crimes ambientais. Há outros registros audiovisuais, um deles datado do ano de 2014, em que o terreiro aparece.

Em nota, a gestão do PNCD informou que foram coibidos ilícitos ambientais na ação, como a apreensão de três caminhões e o fechamento de duas serrarias que estariam envolvidas em extração ilegal de madeira na área, além da apreensão de armas de caça e a desinstalação de uma corda de slackline não autorizada no Cachoeirão. 

A nota informa que as construções eram irregulares e, no caso específico da região do Curupati, já tinham recebido denúncias de que pessoas residentes na cidade de Lençóis estavam construindo casas na região, o que teria sido comprovado por imagens de satélite. Nessas imagens, oito novas construções teriam sido feitas a partir do ano de 2020, mas ainda segundo a gestão do PNCD, a equipe que esteve no local identificou 16 construções em andamento ou recém construídas, as quais, inabitadas, teriam realmente sido destruídas. O órgão se diz amparado na legalidade.

Sobre o terreiro, inicialmente foi informado que não havia nenhuma identificação na casa e que apenas a existência de outros dois terreiros eram de conhecimento do ICMBio, dentre os quais o terreiro de Damaré não constaria. Ainda classificaram o imóvel como uma casa recém-construída e sem ocupantes, o que foi refutado pelo próprio líder religioso e por Uilami Dejan, supracitado, autor de um vídeo documentário de 2014, que retrata o terreiro já naquela época.

A pesquisadora Maria Medrado alertou para a subidentificação das comunidades pelo ICMBio, haja vista que no plano de manejo do parque, feito no ano de 2007, apenas oito comunidades tradicionais foram citadas, enquanto em suas pesquisas para a tese de doutorado, ela analisou em torno de 24 comunidades. Nessa mesma divergência, poderia estar o Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca.

Questionada pelo Chapada News, a assessoria de comunicação da presidência do ICMBio, em Brasília, emitiu nova nota em que reconhece o erro e lamenta a violação do templo religioso. Segundo a assessoria, “os fiscais iniciaram a demolição porque não identificaram, do lado externo, sinais de que era um imóvel com fins religiosos, e os materiais usados na sua construção (madeira, telhas etc.) sugeriram se tratar de construção recente.” Ainda de acordo com a nota, a ação foi interrompida tão logo os fiscais perceberam os objetos de caráter religioso e uma análise interna foi iniciada para apuração da questão. 

A Prefeitura de Lençóis se manifestou com consternação e repúdio, afirmando que pretende cobrar uma investigação rigorosa e a responsabilização dos agentes envolvidos na ação. A prefeita Vanessa Senna informou ter solicitado uma reunião com o responsável pelo parque, Sr. Cezar Gonçalves, reiterando que nem o município e nem os moradores foram notificados a respeito da realização da demolição das casas e do terreiro.

Um coletivo de órgãos que trabalham direta ou indiretamente com as questões envolvendo as comunidades, diante dos acontecimentos, afirmaram que toda ação de proteção ambiental sem diálogo com os povos tradicionais que preservaram e conservaram os próprios territórios, é uma prática que pode ter cunho racista e incide na criminalização de lideranças populares. “Independente do período das construções, a autonomia e os direitos dos povos de terreiro e comunidades tradicionais precisam ser respeitados”, completam.

Confira a entrevista na integra que o líder religioso do Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca, Gilberto Tito de Araújo, conhecido como Damaré, o Uilami Dejan, Diretor de Promoção da Igualdade Racial de Lençóis e a professora e pesquisadora Maria Medrado deram ao Chapada News. Eles falaram sobre a ação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que invadiu e destruiu o templo religioso de matriz africana e demoliu também demoliu 10 casas no povoado e se deu, segundo declarado por moradores e pela Prefeitura de Lençóis, sem qualquer notificação prévia.

Fotos: TiviGriô

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