Quando a festa acaba, sobra a dívida: músicos sem pagamento e cultura em risco.
Era a virada do ano de 2023 para 2024 e um grupo musical se apresentava na praça do Vale do Capão, distrito famoso de Palmeiras, na Chapada Diamantina. Antes do final previsto para a apresentação, um recado: “a banda que viria depois não vai mais tocar, continuem no palco até a virada”. Sem espaço e tempo de negociação, pensando em aumentar os ganhos do dia e na suposta visibilidade de artista principal, a banda Joca Lobo & os Capônicos resolveu ficar e improvisar mais uma hora e meia de show.
O cachê combinado para a primeira parte da apresentação foi de R$2.000,00, de forma que nada a menos do que isso estava sendo esperado pelos músicos, que tinham quase dobrado o tempo de apresentação. No entanto, na realidade recente do Vale do Capão, o circuito de festas tradicionais tem se transformado em fonte constante de frustração para músicos locais. Na situação em questão, apenas ao final de aproximadamente quatro meses, os artistas conseguiram receber pela apresentação, mas o valor nem sequer chegou perto do combinado, apenas R$800,00 foram pagos.
Em denúncia feita pelo músico e líder do grupo, essa é uma situação cada vez mais frequente na localidade. Em eventos que marcam o calendário local — Carnaval, São João, feriados e datas comemorativas — artistas enfrentam atrasos de pagamento, contratos quebrados e promessas não cumpridas, situação que mina a confiança e a sustentabilidade de quem contribui com as celebrações locais.
Entre as denúncias, que também incluem o Carnaval de 2024 e outras situações festivas, estão a falta dos pagamentos combinados, que muitas vezes não são honrados ao final das apresentações, deixando bandas e músicos sem receber por serviços prestados, a irregularidade financeira que se impõe na vida dos profissionais, obrigando-os a aceitarem trabalhos precarizados, sem contrato, e a consequente falta de condições de trabalho, o que compromete a continuidade de tradições que dependem diretamente da atuação dos artistas locais.
São João 2025

Nesse cenário, e como o tempo não para, chegaram os festejos juninos. No São João de 2025, a Prefeitura Municipal custeou infraestrutura e algumas atrações, notadamente bandas e artistas de alcance regional e nacional, deixando a encargo da agente territorial de cultura, Laís Araújo, organizadora do São João do vale, a responsabilidade de arcar com os pagamentos das bandas locais por meio de arrecadação de contribuições e doações que viriam do comércio local e da comunidade.
Historicamente, comerciantes da vila e estabelecimentos turísticos tinham o compromisso com patrocínios e ajuda direta para viabilizar as festas e remunerar artistas. No entanto, nos últimos anos, essa prática aparentemente vem diminuindo, apesar do constante aumento do fluxo turístico durante eventos, criando um desequilíbrio entre o faturamento gerado pelos visitantes e o investimento em cultura local.
A redução do apoio comercial ampliou a pressão sobre organizadores, transferindo o ônus das festividades para bolsos individuais e para a boa vontade de poucos. A Associação Comercial de Turismo do Vale do Capão (ACOMTUV) fez um repasse, oriundo das contribuições mensais dos associados, e alguns estabelecimentos do entorno da vila também doaram, o que foi suficiente para custear ornamentação típica, alguns itens de alimentação e camarim, além do transporte de artistas entre Palmeiras e o distrito durante a festa.
Novamente, os artistas locais ficaram sem cachê. E dentre as bandas prejudicadas, está a do sanfoneiro mais antigo da comunidade, a Zabumbaiada. Além dela, estão Joca Lobo & Os Capônicos, Quarteto Capônico, Bando Pé de Estrada e Forró Beiju.
A delicadeza dessa situação reside especialmente em não haver um único “grande” culpado, apesar de haverem grandes prejudicados. Em entrevista ao Chapada News, Laís Araújo, apontada como responsável direta pelo não pagamento, explicou que não foi a única responsável pelo festejo, segundo ela mesma, um dos maiores que a comunidade já recebeu, e que assumiu, de forma voluntária, as responsabilidades sobre a festa, incluindo o pagamento das bandas que não seriam custeadas pela prefeitura.
A jovem afirma ter sido movida pela possibilidade de “manter vivas e revitalizar as histórias e tradições do São João do Capão” e que foi muito desafiador receber a atenção dos estabelecimentos comerciais locais. Ela afirma que não recebeu promessas claras de apoio, mas acreditava que teria respostas positivas dos comerciantes. “Tive acenos e abertura para que eu enviasse uma proposta que elaborei, mas nenhuma promessa explícita foi feita e não cumprida.”, afirmou. “Todos que deram algum aceno positivo receberam propostas, mas poucos de fato contribuíram”, completou.
Laís é nativa do Vale do Capão e conhecida por praticamente toda a comunidade, inclusive na esfera cultural. Infelizmente, essa condição não foi suficiente para que a organizadora conseguisse mobilizar a comunidade a doar e, então, passou a ser alvo de cobranças, segundo ela, cada vez mais intensas.
A contratação das bandas locais foi informal, o que motivou os artistas a buscarem a exposição da agente como forma de pressão. Sem contratos assinados e há três meses sem vislumbre de receberem seus cachês, os ataques públicos tinham como alvo a falta de garantia real do aporte financeiro antes da contratação.
A organizadora passou a ser alvo de críticas nas redes e no convívio comunitário, o que agravou ainda mais um cenário já tenso entre artistas, população e poder público. O episódio expõe a desvalorização dos artistas locais, em mesma intensidade que expõe a vulnerabilidade de quem assume a produção de eventos em contextos de recursos escassos e de regras pouco claras no distrito mais badalado de Palmeiras.
Possibilidades via poder público
No último dia 17, a Prefeitura de Palmeiras emitiu uma nota de esclarecimento, em que informa que as bandas contratadas diretamente pela administração municipal tiveram seus cachês honrados integralmente e se exime de qualquer responsabilidade pelas bandas locais. “Qualquer comentário que associe a Prefeitura de Palmeiras aos pagamentos da festa do Vale do Capão é infundado e não corresponde à verdade”, diz a nota.

Diante da situação envolvendo a falta de pagamento das bandas locais, o Secretário de Turismo e Cultura, Eraldo Nery, afirmou, em entrevista ao Chapada News, que a administração municipal não tem como interferir no pagamento desses cachês, devido ao fato de já ter sido feira a informação das bandas no Portal da Transparência dos Festejos Juninos da Bahia, do Ministério Público. Dessa forma, não há possibilidade de justificar novos gastos da gestão em atrações juninas. Ainda de acordo com o gestor da pasta da Cultura, o porte do evento talvez seja uma das questões a serem revistas, já que o orçamento da administração municipal não permite o custeio total de eventos de grande porte.
Cinco bandas sem cachê e um questionamento
A cultura musical do Vale do Capão corre o risco de se enfraquecer se a lógica de precarizar quem sustenta a tradição no dia a dia for mantida. A valorização dos músicos locais não é apenas uma questão de justiça, é condição para preservar a identidade cultural e a qualidade das celebrações que atraem visitantes e movimentam a economia local.
Essa situação expõe algumas camadas e aponta para a prevalência do bom senso e da atitude comunitária que se costuma atribuir à localidade para sua resolução. Isso conseguiria resolver essa questão pontual, mas o que mais seria necessário para que novos episódios como esse não aconteçam?
Para “o show continuar”, é importante restaurar pagamentos justos, restabelecer o apoio do comércio, redefinir o papel dos organizadores e alinhar envolvimento do poder público com a demanda financeira do evento.
Ananda Azevedo | Foto: Divulgação Joca Lobo & os Capônicos