A zona rural de Rio de Contas, na Chapada Diamantina, foi o local escolhido para o novo projeto de vida que envolveu a criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural.
Janete está sentada à mesa, conversando com os visitantes. Uma cozinha bonita, bem decorada. Lembra até aquelas casinhas em miniatura, com móveis de madeira e detalhes charmosos, mas só que em tamanho real. Uma salada de cores vivas no centro da mesa é servida, com vinagre de manga, produção da casa. De repente, ouvimos o canto de vários pássaros. Estão bem próximos. Dá para vê-los da janela. Albertinho se levanta, abre a porta lateral da cozinha, assobia e parece se comunicar com as aves, que voam e dançam ao seu redor, como quem reconhece com felicidade um ente querido.

“Ele (Albertinho) fala o saguês, o bugês e o coquês”, brinca Janete, referindo-se ao marido. O casal, há nove anos, decidiu abandonar a vida agitada na cidade grande, em Salvador. “Incomodava o barulho, a competição”, destaca a anfitriã. Como lugar de refúgio, escolheram a zona rural de Rio de Contas, especificamente no povoado de Brumadinho, num lugar de muita área verde e morros imensos. “Na verdade, a gente não escolheu. Fomos escolhidos”, diz Janete.
Mas a decisão não envolveu só algo de ordem pessoal. O benefício da escolha deles é coletivo. Adquiriram um terreno de 107 hectares, cuja face oeste fica em frente ao Pico das Almas, um dos “Gigantes do Nordeste”, conjunto de morros mais altos da região. Lá, decidiram fazer da propriedade uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), em 103 hectares (96% da área total). Criada por ato voluntário do proprietário, uma RPPN é uma unidade de conservação de domínio privado, gravada com perpetuidade na matrícula do imóvel, com o objetivo de conservar a diversidade biológica. “A diferença é que uma RPPN é perpétua”, faz questão de ressaltar Albertinho. O que motivou a criação, emenda ele, foi o modelo predatório atual da sociedade que “destrói a biodiversidade dos ecossistemas”. Segundo a Confederação Nacional de RPPNs, há, no país, 1899 reservas. Na Bahia, são 191.
Batizada de “Volta do rio”, a RPPN deles é também uma lugar cadastrado no Inema para soltura de animais silvestres (nível um), como pássaros, felinos, aves, entre outros. “Aqui (nessa região) tem macacos bugios. Já foi muito mais pleno deles. Temos o Pico do Barbado (outro Gigante do Nordeste) porque o bugio é conhecido aqui como Barbado. O nome da Serra era por causa da quantidade”, conta Albertinho. Há três anos, um bugio macho foi solto na região, que só tinha duas fêmeas. Um segundo macho apareceu, não se sabe de onde.
O casal é soteropolitano. Janete Medrado é ex-advogada, ex-analista de sistema, psicoterapeuta. Albertinho Barreto de Carvalho é químico, com doutorado em química e, por opção, destaca que virou “permacultor”. Hoje, ambos estão aposentados e se dedicam à vida no local, a plantar frutíferas, o próprio café, árvores de reflorestamento, acompanhar a compostagem, cuidar da horta, entre outros afazeres.
Até chegarem ali, conta Janete, enfrentaram um processo de reflexão significativo. “Muitos anos de busca de um processo nosso interno. Cada um individualmente e também os dois nesse coletivo pequeno. Chegamos nessa terra através de muitas caminhadas que a gente fazia na Chapada (Diamantina). Uma busca que a gente não sabia bem. A princípio, era só por lugares bonitos. Depois que a gente chegou a entender que era uma busca de nós mesmos. Hoje a gente procura unir o interno com o externo, que é o mais importante”.
Para eles, o mais importante é a relação com a natureza, de forma a conserva-la. “A natureza somos nós. Às vezes, a gente faz essa separação. Eu e ela. Mas não tem isso. Nós somos parte dela. Ela é muito maior e nós somos uma parte bem pequena dela. Quando a gente humildemente reconhece e se curva perante ela, tudo fica mais fácil da gente conviver”, diz Janete.
A “Volta do Rio” está interligada com outras cinco RPPNs de amigos criadas no mesmo projeto, perfazendo um total de 550 hectares de área protegida. A topografia da região é bastante acidentada, com altitudes variando de 1.320 a 1.560 metros. A propriedade está inserida na microbacia do rio Brumado, parte importante da bacia do Rio de Contas. “Hoje a gente está aqui nesse lugar, convivendo e mostrando que é possível conviver em harmonia com a natureza de fato. Não apenas na moradia, mas no ritmo de vida”, acrescenta.
No local, já foram soltos bugios, jaguatiricas, corujas, mais de 600 pássaros, entre outros. “Quando solta, é preciso dar um suporte. Deixamos alguns alimentos soltos até os animais se encontrarem e definirem para onde vão”, conta Albertinho. Para a Janete, a sensação de liberdade, ao presenciar a soltura, é emocionante. “Parece que a gente voa junto com ele, sobretudo as aves”.



Fotos: Acervo pessoal
Preservação
Na casa, Albertinho faz a própria tinta que dá cor às paredes. Utiliza água, cola e terra. Às vezes, palma. A do cacto mesmo. O banheiro é seco, uma alternativa ecológica no tratamento de fezes humanas. Ele faz questão de ressaltar que o terreno fica na área de nascentes e que a preservação desse berço d’água é fundamental. “Aqui, a gente veio reaprender a viver em harmonia com a natureza, fazendo impacto positivo, melhorando o solo, a vegetação, ajudando na biodiversidade, na questão hídrica”.
Os dois têm esperança de repassar tudo que têm aprendido com a relação saudável com a natureza para outras pessoas. “A vontade de dizer ‘venham também. Façam parte desse movimento’, porque não tem outro se não for por aí. Cuidar da casa interna e da casa externa, porque não tem separação”, frisa Janete. Os anfitrões planejam um modelo para receber pessoas. “Não é interesse da gente criar uma pousada aqui. Aqui não tem essa característica. Queremos que a comunidade (do Brumadinho) faça parte disso, que as pessoas se alimentem lá, que gere uma renda local também”, explica Albertinho.
Atualmente, os anfitriões vivem uma rotina sem pressa. Depois de cuidar dos afazeres da casa, do terreno, há o descanso. “Fora isso, tem uma flauta pra tocar, um violão pra tocar, um banho de piscina pra tomar, uma trilha pra fazer aqui dentro mesmo. Ver se precisa limpar. Todo dia tem coisa pra fazer. Quando não tem, a gente senta na varanda, bota um vinhozinho e vai olhar a vida dos outros: a vida do mocó, a vida do jacu, a vida dos passarinho”, brinca Albertinho.
O casal se divide entre as atividades da casa. Após 47 anos juntos, dizem, quando questionados sobre como manter tanto tempo uma união, que não sabem a receita. “Deve existir, mas não sabemos. A gente foi ficando. E faríamos tudo de novo”, explica Albertinho. “Com certeza”, emenda Janete. Vida longa ao casal e à preservação da natureza.









Fotos: Flavimir Guimarães
Anderson Sotero, jornalista, viajante e editor do Comoviajeiblog para o Chapada News